Reflexões sobre psicanálise e as transidentidades
- Milena Lobão

- 17 de out.
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Nos últimos anos a psicanálise vem tentando se debruçar sobre questões relacionadas às transidentidades e os estudos queer. Lima (2021) cita a afirmação do filósofo Tim Dean de que os estudos trans (ou queer) começaram com Freud. A obra de Freud ainda tem servido para autores contemporâneos, como Judith Butler, para refletir sobre conceitos como melancolia de gênero, constituída pelos resíduos de desejos homossexuais não reconhecidos devido à heterossexualidade normativa. Em 1905, Freud escreveu os Três ensaios sobre a sexualidade mostrando que a pulsão sexual não seria ligada a nenhum objeto específico e que teria uma estrutura perverso-polimorfa, com a consequência de que a unificação da satisfação sexual em torno dos genitais seria um processo sempre inacabado.
As teorizações sobre as questões trans e psicanálise têm se desenvolvido das mais diferentes formas. Cunha (2021a) estabelece três eixos para explicar a articulação entre os estudos queer e a psicanálise. No primeiro eixo, denominado como clínico, a transexualidade é analisada por uma abordagem teórico-explicativa e clínica. Neste eixo sobressai uma visão patologizante e uma obsessão pela busca de uma etiologia, aproximando as transexualidades de quadros clínicos e da nosografia psiquiátrica. Um segundo eixo localizado nos confrontos entre a psicanálise e o feminismo, no início, e, depois, com os estudos gays e lésbicos, os estudos de gênero e, por fim, os estudos queer. Neste eixo as questões teóricas são confrontadas com as posições sociais e políticas, indagando sobre o papel da psicanálise na sociedade e na cultura. Já o terceiro eixo, segundo o autor, tem sido negligenciado, e é justamente a história do lugar das sexualidades dissidentes na clínica psicanalítica e o lugar da questão moral no pensamento e na prática do psicanalista. Esse último eixo está relacionado a uma discussão ética em que alguns psicanalistas remetem a transexualidade à categoria de perversão associada a um fundo moralizante, de modo que Elizabeth Roudinesco aproxima o transexual do pedófilo e do terrorista.
E. L. Cunha (comunicação pessoal) faz uma divisão didática da história da transexualidade e da psicanálise em dois tempos: 1) a busca por outro sexo e; 2) a recusa desses dois sexos. O primeiro tempo é pautado pelo modelo de inversão sexual e pelo modelo da mudança de sexo. O foco desse primeiro tempo é na busca de uma troca de sexo e o binarismo é inegociável. Muitos psicanalistas ainda estão presos a esse primeiro tempo ao defender que o binarismo é organizador do sujeito e da sociedade. Neste caso, esses psicanalistas se pautam numa visão médica e nas ideias de Stoller (que considera a transexualidade como perversão), ou de Lacan (que coloca a transexualidade como funcionamento psicótico), ou ainda como um sintoma histérico da atualidade (conforme defendido por Jorge & Travassos, 2018).
No segundo tempo, evidencia-se que não é apenas um desejo por mudar de sexo, mas há um desconforto que está relacionado à norma binária vigente. Neste momento a transexualidade é pensada como experiência humana. O indivíduo vive uma experiência transidentitária e a sua vida não pode ser reduzida, apenas, a sua dissidência de gênero. Pensando a transexualidade como experiência e forma de ser, Eduardo Leal Cunha questiona por que o indivíduo não pode criar a sua identidade e seu corpo (principalmente numa época em que, de uma maneira geral, se transformam tanto os corpos).
Dito isso, é importante pensar o lugar do corpo diante desse movimento de recusa da norma. Para essa reflexão é preciso resgatar o texto Sobre as teorias sexuais das crianças (Freud, 1908/2018). Nesse texto, Freud convida a tentar ver as coisas na Terra como seres pensantes de outro planeta. Neste momento, seria possível perceber a existência de dois seres com aparência muito semelhante, mas, em alguns aspectos, apresentam sinais externos de diferença. Essa distinção, não seria tomada por diferenças anatômicas, mas sim, por meio de sinais externos evidentes. A criança, imersa nessa cultura e discurso, vai aceitar e tentar se adequar. Desde o começo ela vai receber um nome, vai usar e observar vestimentas e vai escutar o que ela pode ou não fazer (como menina ou menino). Assim, a distinção de gênero e sua categoria binária são dadas a criança desde cedo e não leva em conta o pulsional (Ceccarelli, 2017).
Desta forma, não dá para pensar sobre o corpo sem pensar nos movimentos pulsionais presentes na formação da representação psíquica desse corpo e que existem complexas relações entre o corpo sexuado e a identidade sexuada. A construção de uma identidade psíquica do corpo faz parte do sentimento de identidade sexuada e estabelece qual é a relação que o sujeito tem com o seu corpo (com o real do corpo). Essa construção varia conforme o tempo e o contexto cultural ao qual o sujeito está inserido (Ceccarelli, 2017). O corpo que interessa à psicanálise é um corpo fantasiado, uma dimensão fantasmática, que é atravessado pela linguagem (Cunha, 2013). Para Freud, o corpo é o local em que emerge o pulsional (e seus conflitos), mesmo assim, existe uma falta de consenso sobre o estatuto do corpo na psicanálise (Ceccarelli, 2017) o que pode trazer uma estranheza e um viés moralizante em certos discursos psicanalíticos.
Diante desse viés moralizante adotado por alguns círculos psicanalíticos é que o filósofo Paul Preciado, filósofo autodeclarado homem trans, se apresenta na Escola da causa Freudiana de Paris da seguinte forma: “eu sou o monstro que vos fala”. Preciado endereça aos psicanalistas e à própria psicanálise uma série de perguntas e provocações ao desafiar os critérios binários de categorização do humano (Lima, 2021; Cunha, 2021b). Cunha (2021b) menciona a fala de Preciado: “O monstro é aquele que vive em transição. Aquele rosto, corpo e práticas não podem ainda serem considerados como verdadeiros em um regime de saber e de poder determinados”. Esse ser monstruoso toca nos limites da humanidade e corre o risco de não se reconhecer ou ser reconhecido como humano. Então, é de se pensar o que uma análise, e um analista, pode fazer com um sujeito que se apresenta como monstro. Será que essa psicanálise está, de fato, escutando esse sujeito? É na análise que o sujeito pode teorizar sobre a sua forma de existir, então, por que não também pensar sobre a construção de seu próprio corpo?
Pensando nesse corpo em construção e em transição, Preciado questiona quais são esses limites do humano e como eles podem ser ultrapassados ou redefinidos. Esses limites do humano ainda estão indissociados de uma questão estética e de valores e normas que regulam a vida comum. Há um limite perceptivo que é definido pela estética vigente e que faz com que algumas formas de existência sejam vistas como ininteligíveis ou imperceptíveis. Não se pode esquecer que existe uma ordem simbólica compreendida no regime estético, que vai orientar a forma de perceber o mundo, demarcar limites e definir a compreensão do que é percebido. Desta forma, a psicanálise corre o risco de ignorar o caráter transitório do regime estético que sustenta uma concepção de ordem simbólica, como Complexo de Édipo e Diferenças Sexuais, podendo legitimar um ideal humano (Cunha, 2021b).
Quando Preciado apresenta a anormalidade ou a monstruosidade, não para buscar uma cura ou uma normalização, mas sim para expandir o que se entende por sentidos e experiências humanas. Cunha (2021b) propõe que talvez a sociedade esteja diante de uma quarta ferida narcísica: o homem não está no centro do universo, o homem é herdeiro do macaco, o homem não é senhor de seus atos e pensamentos e agora, o homem se confunde com os objetos que ele mesmo fabrica e teme que um dia, esses objetos assumam o controle sobre ele. Desta forma, a figura do monstro, agora, é contaminada pela figura do cyborg que foi possível ser construído com a tecnologia que existe. As dissidências contemporâneas de gênero não são apenas marcadas pela recusa da ordem binária da diferença sexual, mas pela transformação da materialidade corpórea, colocando a sociedade diante de outras modalidades de existência. Com isso, as fronteiras se expandem e novas formas de existência humana passam a ser reconhecidas.
Os estudos queer têm estimulado a psicanálise a rever as relações de poder estabelecidas em seu campo teórico e institucional. Butler diz que a psicanálise pode assumir um papel de crítico da normalização e da regulação social (Knudsen, 2010). A psicanálise pode ser levada a seus limites para que ela possa encontrar formas de poder compreender o campo indefinido e sem fronteiras de gêneros e sexualidades. Essa compreensão pode ajudar na construção de novos dispositivos não normativos de acolhimento das transidentidades.
Cunha (2021) retoma algumas recomendações feitas por Freud no seu texto “Recomendações ao médico que pratica a psicanálise” para que se tenham condições para uma escuta analítica. De modo geral, o texto de 1912 recomenda que exista um descolamento entre a psicanálise e a medicina e que se tenha uma postura ética na sua prática, tendo como núcleo esse encontro entre a associação livre do paciente e a atenção flutuante do analista. Essas simples orientações já orientam para um despatologização das experiências transidentitárias. A escuta deve estar deslocada da busca pela conformidade sexual e busca de etiologia para um reconhecimento de uma forma singular de ser frente ao binarismo de gênero. Não se trata mais sobre saber o porquê se é trans, mas sim como é viver sendo esse sujeito singular.
A teoria e a escuta psicanalítica podem continuar a ser potentes ferramentas para questionar os processos de corporificação sem, para isso, normatizar, podendo ser uma importante interlocutora dos estudos queer (Porchat, 2014a). A psicanálise pode reaprender a considerar as especificidades do inconsciente e das pulsões, mas não deve ignorar a história e a cultura que os indivíduos estão incluídos (Bulamah & Kupermann, 2016). Assim, a psicanálise pode assumir uma postura ética e pode ser uma poderosa ferramenta para o enfrentamento da segregação e violência dirigida aos dissidentes de gênero que causa tanta angústia e sofrimento a esses indivíduos.
Referências:
Bulamah, L. C., & Kupermann, D. (2016). A psicanálise e a clínica de pacientes transexuais. Revista Periódicus, 1(5), 73-86.
Ceccarelli, P. R. (2017). Transexualidades (3ª ed). Pearson Clinical Brasil.
Cunha, E. L. (2013). Sexualidade e perversão entre o homossexual e o transgênero: notas sobre psicanálise e teoria Queer. Revista Epos, 4(2), 00-00.
Cunha, E. L. (2021a). O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política. Criação humana.
Cunha, E. L. (2021b). Sobre macacos, cyborgs e transexuais: a psicanálise e os limites do humano. In J. Stona, Relações de gênero e escutas clínicas (pp. 35-49). Editora Devires.
Freud, S. (2017). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Obras completas, volume 6: três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (pp. 13-172). Companhia das Letras. (trabalho original publicado em 1905).
Freud S. (2018) Sobre teorias sexuais infantis. In S. Freud, Amor sexualidade e feminilidade (pp. 95-115). Autêntica Editora. (trabalho original publicado em 1908).
Jorge, M. A. C. & Travassos, N. P. (2018). Transexualidade: o corpo entre o sujeito e a ciência. Zahar.
Knudsen, P. P. P. D. S. (2010). Conversando sobre psicanálise: entrevista com Judith Butler. Revista Estudos Feministas, 18(1), 161-170.
Lima, V. M. (2021). A subversão pelos dejetos. Revista Cult, 270, 19-23. https://revistacult.uol.com.br/home/a-subversao-pelos-dejetos/
Porchat, P. (2014a). A transexualidade hoje: questões para pensar o corpo e o gênero na psicanálise. Revista Brasileira de Psicanálise, 48(4), 115-124.





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